TREVAS
Tempos atrás tentei desenvolver uma abordagem própria da banalização do mal, aquele conceito que a Hannah Arendt (1906-1975) consagrou cobrindo o julgamento de Nuremberg, vendo aqueles altos funcionários nazistas dizendo que apenas “cumpriam ordens”. Pretensão besta, a minha. Não há mais o que desenvolver, claro. Com um mínimo de capacidade de reflexão, seria impossível, pelo menos depois do Iluminismo, tratar a barbárie, qualquer que seja ela, como parte da normalidade. Exagero. Foi já sob o Iluminismo que se desenvolveu, na sociedade ocidental, grande parte da escravização de negros e massacres de povos originários pelas potências coloniais europeias na América; foi sob o Iluminismo que ocorreu a dominação belga no Congo, exemplo de crueldade e racismo; o Iluminismo já estava por aí e fez sombra para o apartheid, pra discriminação oficial nos Estados Unidos, pro nazismo. A substituição do pensamento dogmático e religioso pela luz da razão não foi suficiente para que se alterassem os comportamentos considerados bárbaros, apesar de ter aberto os olhos de parte das pessoas para - pelo menos isso - diferenciar o razoável do absurdo. Pena que persistam – Obrigado, Hannah! - mentes capazes de banalizar o mal.
Tantos anos e experiências depois, ainda temos uma parte importante da humanidade controlada por uma lógica religiosa impermeável ao Iluminismo, e que interpreta a seu modo as orientações das religiões a que se vinculam, geralmente atribuindo a algum tipo de divindade o poder absoluto e a suprema orientação comportamental, geralmente contrária a tudo o que levamos tanto tempo pra compreender como razoável, ao menos no ocidente. Mas é aqui mesmo que voltamos a ter que nos haver com o que deveria ter sido superado ali na virada do século XVII pro XVIII.
A questão, que demanda obviamente a análise de gente melhor qualificada que eu, fica muito mais complicada quando se constata – e acho que todo mundo sabe disso – que o Adam Smith (1723-1790), o principal teórico do liberalismo econômico, é um expoente do “século das luzes”, o XVIII. Não sou eu quem vai questionar a importância do Adam Smith e o fato de ele ter lançado as bases pra efetiva organização econômica das nações e dos indivíduos, mas o obscurantismo que volta a nos dominar depois de quatrocentos anos me parece ter mais relação com o capitalismo, a nova religião, do que com as divindades tradicionais, aquelas para as quais se reza sem um contato mais direto, na “convicção das coisas que não se vê, mas se crê”, como diz o conceito religioso de fé.
Assim, para além de tudo o que pareceu negar o Iluminismo ao longo dos anos, de toda a barbárie que testemunhamos, de todo o racismo, de todo o machismo, de toda a exclusão por razões diversas, de toda forma de desrespeito aos direitos humanos (também herança iluminista, da Declaração dos Direitos do Homem, Revolução Francesa), agora nos deparamos seguidamente com exemplos tão miseráveis, tão abjetos, tão absurdos, que talvez envergonhassem mentes pré-iluministas.
O cruel assassinato do Moïse, congolês refugiado no Rio de Janeiro com a família desde criança, fugindo da insensatez da guerra em seu país de origem, guerra essa que tem em seu DNA a dominação Belga, lá atrás, se deveu a míseros 200 reais, ou a uma cerveja que ele teria tomado a iniciativa de pegar por conta própria no freezer. Se isso não é a adoração definitiva do dinheiro, que faz a vida valer menos que aquelas 200 pratas que lhe deviam ou menos que uma cerveja, não há outra explicação possível. E como a maioria das religiões, também essa converte gente de todas as origens, fazendo com que pobres como ele se arvorem na condição de “sacerdotes” e apliquem as sanções, sem intermediários. Pobres negros matam um pobre negro com crueldade, em nome da defesa intransigente de um patrimônio absurdamente pequeno e que não lhes pertence, dando forma, corpo e visibilidade ao racismo estrutural que nos permeia como sociedade.
E praticamente no mesmo dia da divulgação tardia do caso Moïse, vem outra manifestação fatal de insensatez, com o assassinato de um vizinho negro, Durval, pelo vizinho branco, sargento da Marinha, que o viu como uma ameaça e alega legitima defesa. Ambos moravam no mesmo condomínio, o que os coloca em pé de igualdade sob o ponto de vista econômico-social. De dentro do carro, vendo a aproximação do negro, já atirou. Depois saiu do carro e deu mais dois tiros. Pra matar. A vida do outro valia menos que a dele. Um cara a pé de mochila só podia estar querendo o seu carro, ou o celular, ou sabe-se lá o quê. O militar assassino deveria ser o soldado treinado, física e psicologicamente, para o uso de armas com racionalidade, se é que isso é possível. Não era. Foi treinado, como a maioria de todos, mundo afora, para defender, com unhas, dentes e - of course - chumbo, a propriedade, os bens. Diante da importância dos bens, da propriedade, a vida é um detalhe. Ter é muito mais importante que ser.
Não se pode negar que após a praticamente definitiva associação entre o Iluminismo e capitalismo, na interpretação preguiçosa e dominante dos escritos do Adam Smith, que louva a importância do egoísmo para o desenvolvimento da sociedade, muitas tentativas mais ou menos assertivas buscaram dar um sentido menos drástico à teoria. Marx (1818-1883), o barbudo alemão, se mantém como a mais importante plataforma de reação, com todas as releituras e adaptações possíveis.
Com um salto histórico e geográfico enorme, sem considerar um universo gigantesco de coisas acontecidas e que deram, de diversos modos, sentido e forma ao que sentimos hoje em relação ao mundo e aos acontecimentos, chegamos ao Brasil contemporâneo, esse caldeirão cultural misógino, excludente, racista, preconceituoso em suas diversas possibilidades, que perdeu a oportunidade histórica de, como uma das maiores sociedades multiculturais e multirraciais existentes, dar forma definitiva ao Iluminismo, à racionalidade.
Ao invés disso, caminhamos para a consolidação do abjeto modelo de culto ao capitalismo, estranhamente inspirado e até subsidiado pelas mais diversas formas de religiosidade, notadamente o cristianismo evangélico pentecostal, em suas formas mais conservadoras. Não que Max Weber (1864-1920) já não tivesse escrito sobre isso em 1905. Os iluminados existem para isso. O que provavelmente ele não previu foi a transformação do próprio capitalismo em religião e o nível de fanatismo a que ele leva os seus fiéis, detenham eles ou não alguma riqueza.
Os dois assassinatos, que se somam a incontáveis outras mortes e injustiças, ocorreram diante das câmeras. Isso permitiu a revelação, diante de todos, dos assassinos e de suas razões praticamente religiosas, com a elevação do bem material à condição de divindade.
Não posso falar com certeza sobre o resto do mundo, mas nenhum de nós aqui no Brasil, mesmo os mais estranhamente conservadores, estava preparado pra um neo-obscurantismo pré-iluminista, que tem a pachorra de se basear, sob o ponto de vista econômico, nas mesmas ideias que fizeram a era das luzes brilhar tanto.
O Brasil é tão estranho que até a nossa idade das trevas é fortemente iluminada...
Rio de Janeiro, fevereiro de 2022.
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