Tudo muda, mas a alma das Escolas ainda é o Samba
Sentei-me diante do monitor ainda meio febril. Consequência direta da fogueira que foi o desfile do grupo especial das escolas de samba na Sapucaí há poucos dias. Semana passada declarei meu encantamento com aquela pajelança vivida na Passarela do Samba. Nunca vi nada igual. Enredos forres. Alguns eram declarados manifestos musicados abordando a realidade da gente preta, dos índios, dos esquecidos. Outros falando de suas coisas, de gente linda, da História, a tal carta de um pierrô apaixonado endereçada ao Carnaval como trouxe a Viradouro e com a qual muito me identifiquei. Ganhou a Grande Rio, merecidíssimo. No texto passado, afirmei que todas me emocionaram e disse que se dependesse de min, haveria um grande e estrondoso empate. E digo mais: o desfile das campeãs no último final de semana, deveria trazer de volta todas as integrantes do grupo especial. Foi um desfile apoteótico. Muito por culpa dos belos sambas.
Grandes Grupos de Samba e Grandes Sambistas, playlist do Spotify.
Claro que tirando os noves fora a minha paixão desmedida (como qualquer paixão) pelo Carnaval, somada à carência por dois anos sem brincar, o meu entusiasmo tende a baixar a níveis mais aceitáveis. Mais na linha do normal, vamos dizer assim. E parto de uma janela a qual estou mais afeito, que é o compositor. Primeiro que são Escolas de Samba, portanto, o Samba é a razão principal e vetor de tudo que vem depois. O Samba é a alma da Escola e, por isso, a importância do compositor. Essa espécie de premissa me guia desde os cueiros. O que no decorrer do tempo me causou algumas insatisfações e quase frustrações.
Um pouco atrás quando as escolas com forte influência de seus carnavalescos começaram a mudar, dizem, havia uma ingerência na escolha dos sambas enredo. Juntavam o que achavam melhor entre os sambas finalistas e criavam uma espécie de ‘Frankenstein’ que melhor se adaptasse ao desenvolvimento do enredo daquele ano. Na minha visão um desrespeito aos compositores. É que as Escolas passavam a viver uma unidade. Tudo era voltado ao objetivo final de um magnifico espetáculo a ser contado na Avenida, como uma grande ópera ao ar livre. De forma alguma negar o valor de nomes como Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues, Joãozinho Trinta e outros, que estão inscritos no panteão nobilíssimo da história dos desfiles. Eu é que talvez fosse purista em excesso a ponto de não perceber as mudanças que estavam ocorrendo.
Mas o incômodo não começara aí. Antes disso eu acompanhei muitas finais de samba enredo em mais de uma Escola. Conheci o compositor “bom de quadra”. Aquele que tinha uma grande torcida, pessoal municiado com camisa, adereços, etc. O que demonstrava uma estrutura (e dinheiro), contra as quais os compositores mais humildes e menos enturmados, mesmo com um samba melhor, não tinham como competir. Percebi outras forças como influência de diretoria, de patronos. Não havia, em muitos casos, justiça na escolha do samba enredo. Vida dura do compositor.
Samba Rio Centro Show - Playlist no Spotify.
Quando me mudei para o sul do estado, deixei de acompanhar de perto os bastidores das agremiações, ou mais propriamente, a escolha dos sambas. E lá se vão mais de trinta anos. De lá pra cá as mudanças se intensificaram e no campo da composição começamos a ouvir falar dos escritórios de samba, sambas encomendados, essas coisas. A ideia do compositor ligado à ala de determinada Escola, que era a sua agremiação de coração, começa a se desintegrar. Como já acontecia com os intérpretes, que não mais fiéis às cores originais, trocavam de camisa.
Quem não se afastou da realidade das Escolas de Samba percebeu mais claramente as mudanças. Hoje há compositores e escritórios que disputam sambas em mais de uma agremiação. Em dado momento chegou-se a aventar uma pasteurização dos sambas e até a repetição de linhas melódicas. Mas também se reconhece que tem composição de muita qualidade rolando por aí. As alas de compositores estão ameaçadas. Em outros tempos eu acreditaria que era a morte. Mas faz tempo que aquele ideal utópico de resistência da cultura popular nas comunidades está se modificando. Entendo que outros caminhos surgem para os compositores e que a antiga estrutura não se encaixa mais na atualidade das Escolas.
Fora a beleza e o brilho dos desfiles desse ano atípico, que adorei, repito, mais um fato me chamou atenção: o samba da Imperatriz foi feito por um único compositor, Gabriel Melo. Será que estamos no limiar de um novo salto de mudanças nas Escolas de Samba? Sei lá. O carnaval é dinâmico e isso eu já compreendo bem. Carnaval, te amo.E viva o Samba!!
“Samba, Agoniza, mas não morre, Alguém sempre te socorre, Antes do suspiro derradeiro (...)
Samba, Inocente, pé-no-chão, A fidalguia do salão, Te abraçou, te envolveu, Mudaram toda a sua estrutura, Te impuseram outra cultura, E você não percebeu, Mudaram toda a sua estrutura, Te impuseram outra cultura, E você não percebeu” (Samba, agoniza mas não morre- Nelson Sargento)
Samba, Samba e Samba.
Música de Bar e Boteco
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