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Vinicius, Proust, e a União Primordial



   

    Hoje se fala na ilusão da separatividade, ou na falta de conexão entre toda a criação, como se por simples crítica pudéssemos superá-la. Poderíamos, se a desconexão resultante não fosse consequência da nossa própria racionalidade; do que gera a autoconsciência, o ego, e deste, o nosso modo de ser competitivo, a propriedade privada e as guerras de poder. Nossa racionalidade inata limita cada coisa dentro de um conceito fixo e a conhece através da diferenciação de todas as outras.


     A razão cataloga, diferencia e opõe. Graças a isso, temos a ciência e a tão prezada tecnologia, mas também graças a isso, vivemos em cada vez maior fragmentação.


    Muito antes que Einstein declarasse a relatividade do tempo e do espaço, Kant demonstrou que eles não existem em si, mas somente enquanto funções do aparato racional inato e a priori que rege a nossa experiencia da realidade. Para este grande filosofo, o que chama de “forma” do espaço, a qual ele demonstra residir em nós internamente, organiza tudo que vemos externamente dando-lhe extensão, enquanto a “forma” do tempo, igualmente interna, organiza em sucessão todos os nossos pensamentos ou representações.


     Desde que todos esses pensamentos dependem da “forma” a priori (racional) do tempo, a própria autoconsciência, que é simultaneamente a consciência do que está ao nosso redor, é também uma função da razão.


     Por isso, penso que a realidade separatista a que estamos submetidos só pode ser superada nas dimensões irracionais da poesia e do misticismo, as quais alteram tanto a rigidez dos conceitos de cada coisa, destruindo, ou transfigurando, os limites que as cristalizam dentro deles, como também os seus limites espaço temporais.


    A frase de Vinicius “Que seja eterno enquanto dure”, por exemplo, destrói a oposição entre os conceitos de eternidade e duração limitada, e os reconcilia. Destrói, em outras palavras, a lei da não contradição, que é a mais fundamental da logica (ou A ou não A, no caso, ou o amor é eterno, ou tem duração limitada). Porém, o paradoxo que resulta dessa destruição da lógica transmite frequentemente na poesia uma realidade mágica e transcendente.

   

   Através do seu animismo e senso poético, certas passagens de Proust apontam para uma essência comum entre tudo, incluindo fundamentalmente o nosso mundo interno e o externo.   


     Quando o escritor está de férias numa praia da Normandia com sua avó, e ainda não sabe para quem seriam as belas frutas que vê serem entregues no seu hotel, ele as descreve:


   « Ces prunes glauques, lumineuses et sphériques comme était à ce moment-là la rotondité de la mer, des raisins transparents suspendus au bois dessèche comme une claire journée d’automne, des poires d’un outremer céleste ? » (“Essas ameixas glaucas, luminosas e esféricas como a redondeza do mar naquele momento, uvas transparentes penduradas nos galhos secos como em um dia claro de outono, as peras de um ultramar celeste?”)


      Diante do mar, Proust o irmana `as ameixas que vê, não só pela luminosidade delas, mas também por sua forma redonda, assim como identifica as peras `a cor do oceano e do céu ao mesmo tempo.


     Mais tarde, quando ele e sua avó recebem aquelas frutas, da parte de uma marquesa, ele descreve sua leve alteração, bem de acordo com as horas que haviam passado desde o momento em que as viu até a hora de seu jantar, ao fazer uma clara analogia entre tal alteração e o sol poente do anoitecer sobre o mar e o céu:


   « quoique les prunes eussent passé, comme la mer `à l’heure de notre diner, au mauve et que dans l’outremer des poires flottassent quelques formes de nuages roses. » ("embora as ameixas tivessem se transformado em violeta como o mar na hora do nosso jantar, e no azul ultramarino das peras flutuavam algumas formas de nuvens cor-de-rosa. »)

    

    Num outro momento em que descreve o mar, o escritor unifica a cena que vê introduzindo o elemento animista que dá alma a toda sua diversidade, através da diversão de, em suas palavras, “algum deus”.


   “je me demandais si son « soleil rayonnant sur la mer » (Baudelaire) ce n’était pas-bien diffèrent du rayon du soir, celui qui brulait la mer comme un topaze, la faisait fermenter, devenir blonde, écumante comme du lait, tandis que par moments s’y promenaient ça et là de grandes ombres bleues que quelque Dieu semblait s’amuser a déplacer en bougeant un miroir dans le ciel.”

   (“Eu me perguntava se o seu "sol brilhando sobre o mar" (Baudelaire) não era muito diferente do raio da tarde, aquele que queimava o mar como um topázio, o fazia fermentar, tornar-se louro, espumante como leite, enquanto às vezes vagavam aqui e ali grandes sombras azuis que algum deus parecia se divertir movendo um espelho no céu.”)

  

     A capacidade reconciliadora da alma de Proust e de outros poetas deve ter sido grande parte do seu sofrimento, ao viverem, na trivialidade forçada pela vida, a realidade multipartida imposta pela razão.


 

Repertório certificado pela Cedro Rosa.


Jorge Simas, gravando na Cedro Rosa
Jorge Simas, gravando na Cedro Rosa

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