VOLTA PRA CASA
- Leo Viana
- há 1 dia
- 5 min de leitura

A viagem de ônibus corria modorrenta.
As paisagens de todo dia, interessantes aos novatos, não animavam mais ninguém e a ausência do ar condicionado tornava tudo mais pegajoso e estafante. “Pegajoso” pode não ser um bom adjetivo para o caso, mas quem anda de ônibus urbanos no Rio de Janeiro entende bem o que isso significa. As pessoas se amontoavam na volta pra casa num dos trechos em que os sistemas de transporte de grande capacidade não atendem. Restam os ônibus. Os velhos, sujos e mal conservados ônibus, com seus motoristas mal remunerados, de mau humor e com pressa de voltar pra casa, a única justificativa para a velocidade normalmente adotada por eles, especialmente nos casos em que as vias não comportam aquele rally. Ainda assim, para o passageiro comum, acostumado, não havia novidades e era uma viagem modorrenta, monótona mesmo. A sensação seria igual ainda que o Alain Prost ou o Ayrton Senna estivessem se revezando na direção do coletivo.
Digressionando, é importante lembrar que há quem durma nas arquibancadas dos desfiles de carnaval da Marquês de Sapucaí. Mesmo com o som amplificado das baterias, formadas por quase quatrocentas pessoas com instrumentos de percussão, que fazem corações e ouvidos menos preparados chegarem à beira do colapso, apesar da alegria. Se você investigar, provavelmente é gente que anda de ônibus. Um usuário de ônibus do Rio de Janeiro seria capaz de dormir durante um bombardeio aéreo. Muita gente já o faz, pelo fato de morar em área conflagrada, onde os tiroteios são comuns. Ok. Voltemos.
O silêncio foi quebrado por um grito que não foi compreendido imediatamente. Uma parte dos passageiros dormia e, já habituada aos sons estranhos da viagem, nem teve seu sono interrompido. Uma outra parte se mantinha atenta ao deslocamento, apesar do sono, mas não compreendeu do que se tratava. O grito então se repetiu, o que elevou o senso de atenção da maioria dos passageiros que estavam em pé. Importante frisar que havia quem estivesse dormindo mesmo de pé na condução.
O grito, agora já mais compreensível era de uma voz feminina dizendo “A bolsa!!!”. Uma parte, obviamente, acreditou que se tratava de assalto. Inclusive o garoto que, mal intencionado, mas equivocado, tinha embarcado naquele ônibus com a intenção de praticar um assalto. Já tinha desistido. O coletivo encheu demais de passageiros, o que complicaria a logística pra um lobo solitário. Além disso, o fato de o calendário àquela altura ainda estar no terço final do mês, reflexão que ele só fez tardiamente, ia claramente implicar em uma arrecadação de uns poucos reais. Nem tinha como carregar celulares em quantidade, além de a qualidade dos aparelhos, naquela linha que atendia a uma população de baixa renda, não ser exatamente o que o “mercado receptor” desejava. Se preparava pra descer e tentar algum golpe mais rentável quando ouviu, como todos os demais, o grito. Não ficou pra ver o que era. No susto, desceu correndo do ônibus, que parou para que outra pessoa desembarcasse, independente do grito. Mas o grito mobilizou os que estavam na traseira, perto da porta, ao lado de onde a menina estava sentada. O perfil dos passageiros também não levava a que alguém dentre eles pensasse em bolsas de valores. Chicago, São Paulo, Nasdaq, Tokio, NY, Frankfurt, nada disso.
A maioria nem sabia onde ficava ou o que eram essas bolsas. Talvez alguém tivesse ouvido falar num noticiário de tv, mas a maioria só via tv nos fins de semana, quando as bolsas não têm pregão. A bolsa em questão era a bolsa cheia de líquido amniótico e um bebê que vivia ali já fazia aproximadamente 42 semanas. O líquido escorreu pelo ônibus, sem que a maioria percebesse, posto que não era simples olhar para os pés com o ônibus lotado. Algumas mulheres acudiram e só depois alguns homens, talvez envergonhados pela insensibilidade inicialmente demonstrada, achegaram-se para ajudar. A mocinha foi retirada cuidadosamente do veículo, não sem antes ouvir aplausos e desejos de “boa hora” de quem estava mais perto e podia acompanhar, ao menos visualmente, a situação. Simultaneamente, ouviu impropérios e xingamentos de quem estava mais distante e não conseguia ver ou entender o que acontecia. Para os distantes, importava lembrar que o ônibus tinha parado e que isso significava chegar ainda mais tarde em casa.
Alguém há de perguntar, confortavelmente instalado no sofá e lendo o relato, se é possível que alguém não tivesse notado o que ocorreu, considerando o espaço limitado ao interior de um ônibus urbano. Fica clara na pergunta, caso ela efetivamente venha a ser formulada, o desconhecimento, ainda que involuntário, do universo dos coletivos, especialmente daqueles que atendem aos bairros periféricos. Os números indicativos da lotação máxima correspondem a um pequeno percentual dos que realmente embarcam para as épicas odisseias que separam os pontos inicial e final de cada linha. O que acontece na metade inicial do coletivo pode ser tão distante para um passageiro instalado no final como são os polos geográficos da terra. Com a ressalva, talvez, de que os polos são frios, enquanto o interior de um 687, de um 779, de um 786, geralmente apresenta temperaturas de 5 a 10 graus mais altas que a parte de fora do veículo. E isso em um Rio de Janeiro escaldante, muito especialmente no verão. Os números atribuídos às linhas no exemplo são aleatórios, mas ônibus que vai pra longe geralmente tem número alto. De 600 pra cima é viagem comprida e que nem passa pelo Centro.
Algum tumulto se instalou entre os solidários, no fundo, e os ignorantes e revoltados, na frente. Ignorante, no caso, como sinônimo de quem ignora, não com o sentido, comum aqui, de grosseiro ou ríspido. Mas a revolta também os tornava grosseiros, diga-se sem medo de errar.
O motorista, único responsável por aquele povoadíssimo território móvel, só viu a situação depois do desembarque da quase parturiente e ainda estava com dificuldade para entender a ocorrência. Não sabia se devia aguardar o reembarque de parte dos passageiros ou seguir a viagem de rotina.
Por alguma coincidência, estavam próximos a um hospital público e o grupo que acompanhou a grávida seguiu com ela para lá, abandonando o ônibus. O motorista seguiu sua viagem a alta velocidade, maior ainda agora, depois do atraso. Uma parte dos passageiros não acordou. Nenhum outro assaltante embarcou. Nem grávida . Não houve novos gritos. Me disseram que, entre o ponto do hospital e o final da linha, houve apenas um pequeno e passageiro desentendimento sobre um lugar reservado para idosos.
A criança e a mãe passam bem.
Os ônibus cariocas são caixas de surpresa sobre rodas.
Rio de Janeiro, abril de 2025.
Escute essa playlist Spotify / Cedro Rosa.
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