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Foto do escritorLéo Viana

ÁTILA


Leo Viana

Tinha problemas sérios com a memória. Ao menos sob a ótica dos outros. Não com a falta dela, que geralmente acomete a todos em algum momento da vida, notadamente aqueles momentos em que mais precisamos dela. Dinheiro, óculos, cartões, aquele endereço importante, o nome daquela pessoa, a data do aniversário da sogra, a reunião que o chefe recomendou tanto. Quem nunca? Quem nunca precisou voltar em casa por haver esquecido ao menos um item fundamental? Ou nunca se constrangeu diante daquela pessoa que te chama pelo nome na rua e que você tem certeza que jamais viu?


O Átila não sofria desse mal. Mais que o nome do Huno, o Flagelo de Deus, o maior e mais cruel guerreiro que o mundo já viu, ele ostentava uma memória prodigiosa para fins necessários e desnecessários, como datas e detalhes de acontecimentos infelizes envolvendo os amigos, normalmente vinculadas ao consumo de álcool, seguidas ou não de desilusões românticas. Era também um flagelo nas festinhas, quando alguém tinha a péssima ideia de recuperar histórias antigas.


A lendária memória do Átila, no entanto, salvara muitas vezes a turma quando, antes da proliferação dos telefones celulares e de suas monumentais memórias portáteis, era preciso avisar, altas horas, que fulaninho ou fulaninha não ia chegar bem em casa. Se chegasse. Podia eventualmente pernoitar em outro lugar, como decorrência de uma batalha ganha ou perdida, conforme o evento. Era sempre o Átila o encarregado de dar as notícias. Ele não esqueceria e os pais confiavam muito mais nele que em seus filhos.


O tempo, inclemente, passou. Tornaram-se todos adultos mais ou menos responsáveis. O HD privilegiado do Átila, como era previsível, fez com que ele voasse alto. Mais que uma curiosidade exótica, quase kitsch, foi muito útil na carreira que abraçou. Se antes dedicava-se apenas a impressionar pessoas com sua habilidade de registrar acontecimentos, datas, números, nomes, detalhes para os quais ninguém dava importância, hoje era o mais requisitado assessor parlamentar do congresso nacional. Tamanha capacidade fazia de Átila um servidor desejado por todos os parlamentares das duas casas.


Deixara o Rio de Janeiro no início dos anos 80, ainda na ditadura militar, para fazer carreira em Brasília, acompanhando um deputado de oposição amigo da família e admirador das peripécias mnemônicas do garoto, então já estudante de Direito da Escola Nacional. Transferido, terminou o curso na UnB já empregado e, antes de 1988 e dos concursos públicos, foi incorporado ao quadro funcional estatutário do legislativo da República. Pragmático, após alguns anos servindo ao deputado que o levara, foi parar na presidência do Senado, de onde nunca mais saiu, cobiçado que era por situação e oposição.


A vida não tinha rotina, claro. Os bastidores da política são tremendamente imprevisíveis e reservaram a Átila um sem número de acontecimentos absolutamente fora de qualquer padrão de normalidade. Nem vale enumerar os diversos flagrantes sexuais envolvendo parlamentares e assessoras e assessores menos profissionais (ao menos para as funções previstas inicialmente), os casos de corrupção nunca vistos ao vivo, mas amplamente comentados nos corredores intermináveis do parlamento, os acordos fechados de última hora em benefício de causas nem sempre republicanas, pra dizer o mínimo. Não se corrompeu, era bem remunerado, mas talvez lhe coubesse uma prevaricação, pois sabia de coisas. Muitas coisas.


Átila se sentia muito importante, por conta das informações que trazia consigo. Chegou a comentar com a esposa, pesquisadora de um Centro Nacional de Pesquisa, que achava que tinha a estabilidade da República na cabeça, tamanha a quantidade de assuntos e fatos que guardava. Sabia praticamente de cor a Constituição e tinha, como ninguém, noção do que estava em vigor na legislação brasileira, assessorando a todas as comissões. Sabia de trás pra frente os temas, os textos e a autoria de praticamente todas as emendas e projetos propostos e analisados nos anos em que esteve por lá.


Um dia aconteceu. No final da carreira, aposentando, foi convidado, dado o seu conhecimento ilimitado dos assuntos parlamentares, para concorrer a um cargo eletivo. Pensou, pensou, pensou, pensou e pensou. Orgulhava-se, do alto de seu pragmatismo, jamais ter se alinhado à direta ou à esquerda, cumprindo fielmente sua própria lógica da neutralidade. Mas foi à primeira reunião do partido. Pequeno partido, “contrário a tudo que está aí”.


Percebeu que conhecia todas as caras. Eram da direita. Tinha, sem pensar muito, elementos pra condenar a todos os que compareceram com ele à reunião, incluindo o parlamentar que o levara à famigerada reunião. Pensou mais um pouco. Reconheceu ao menos um favorável à tortura, um ou outro policial com processos de homicídio, dois ou três ruralistas envolvidos em mortes por disputas de terra.



Lembrou-se do parlamentar de oposição que o conduzira ainda menino à Capital, encantado com a memória prodigiosa. Decidido a não concorrer, procurou a esquerda. Homens e mulheres mais interessantes. Uns velhos, outros novos, ninguém com graves acusações. Alguns ex-torturados, exilados, funcionários públicos graduados como ele, colegas dos filhos no movimento estudantil. Identificou um com uma suspeita de assédio, mas riu sozinho lembrando que sobre quem formulou a acusação pesavam acusações bem mais graves. Essa memória...


Na apresentação, praticamente desnecessária (afinal era ele o Átila, memória viva!), sentindo-se redimido de omissões passadas, falou pouco, mas disse:

- Posso ser muito útil. Eu sei o que eles fizeram em verões, invernos, outonos e primaveras passados.


Rio de Janeiro, agosto de 2021.


 

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